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Hidrovia Paraguai-Paraná: o que se sabe desse projeto antigo que pode decretar o fim do Pantanal?

SOS PANTANAL Hidrovia Paraguai-Paraná: o que se sabe desse projeto antigo que pode decretar o fim do Pantanal?

A hidrovia Paraguai-Paraná (HPP) é um megaprojeto de governo que atravessa décadas e até hoje ainda não há consenso sobre sua viabilidade econômica e os impactos socioambientais que podem ser gerados.

O avanço das obras deste projeto, de acordo com pesquisadores e especialistas de diferentes áreas, irá gerar grandes danos ambientais para o Pantanal, maior planície alagável do mundo, principalmente na parte que compreende o Pantanal sul, por conta do plano de aprofundamento de 700 km de extensão do canal natural do rio Paraguai, alcançando outros trechos de afluentes como os rios Miranda, Taquari e Cuiabá.

Vamos entender os motivos que este projeto gera tantas discussões.

Histórico do megaprojeto da hidrovia Paraguai-Paraná

O projeto chamado de “hidrovia Paraguai-Paraná”, como é tratado hoje, surgiu há quase 30 anos. Desde então, diversos estudos e análises foram feitas e apresentadas, chegando a conclusões de que o projeto teria uma viabilidade econômica duvidosa e poderia causar um desastre ambiental de enormes proporções para o Pantanal.

O tema da navegação e do transporte fluvial pelos rios Paraguai e Paraná ganhou força no estabelecimento da Bacia do Prata, no ano de 1967, tornando-se tema prioritário de tratativas entre os governos dos países latinos, principalmente discutindo sobre trechos dos rios que requerem obras de dragagem, retificação, sinalização e balizamento, no intuito de melhorar a navegabilidade.

A ideia de fortalecimento econômico da América do Sul e do Mercosul segue como plano de governo levado em frente por diversos presidentes brasileiros. Neste contexto, insere-se a construção da hidrovia como uma ligação física entre os países da América do Sul para escoamento de produções, especialmente soja, milho e minérios entre cinco países componentes da Bacia do rio da Prata: Brasil, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Argentina.

Trajeto da hidrovia

A hidrovia começa no município de Cáceres, em Mato Grosso, no rio Paraguai, e vai até Nueva Palmira, no Uruguai, inserida no rio da Prata. O trecho conta com 4.122 quilômetros, passando pelos rios Paraguai e Paraná.

Desde 1990, empresários de navegação e mineração, políticos locais, estaduais e órgãos federais tentam implementar a navegação de grande porte no rio Paraguai no Tramo Norte, ou seja, de Cáceres (MT) a Corumbá (MS), áreas justapostas ao Pantanal, de altíssimo valor ecológico.

No trecho citado, o rio se divide, formando a ilha de Taiamã (que abriga a Estação Ecológica de Taiamã). O rio forma, então, dois braços estreitos de cerca de 50 a 80 metros, muito sinuoso. Estas condições naturais não permitem que barcaças carregadas transitem pelo local, mas mesmo assim, o projeto continua avançando para aprovação.

SOS PANTANAL Hidrovia Paraguai-Paraná: o que se sabe desse projeto antigo que pode decretar o fim do Pantanal?

A Estação Ecológica Taiamã é uma unidade de conservação federal que pode ser prejudicada pela hidrovia Paraguai-Paraná – Foto: Daniel Kantek / ICMBio

 

O que prevê o projeto no âmbito econômico

O projeto prevê a liberação de navegação de grande porte no Tramo Norte, que é proibida desde 2000, além de concessão do trecho entre Cáceres (MT) e Porto Murtinho (MS) da hidrovia à iniciativa privada. Com estas liberações, estima-se um aumento em, pelo menos, quatro vezes o atual transporte de volume de cargas, principalmente commodities agrícolas e minérios de ferro e manganês.

De acordo com levantamentos feitos pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e pela Universidade Federal do Paraná, 285 milhões de toneladas de cargas dos cinco países fluirão pela hidrovia, sendo que menos de 10% vindo do Brasil.

O principal problema nesta liberação, que vem sendo ignorado desde o início, são os danos ambientais e sociais causados, atingindo diretamente uma área crucial para o pulso de inundação no Pantanal, bioma sensível e dependente do sistema de inundações do rio Paraguai e seus afluentes. A região reúne um mosaico de Unidades de Conservação federais (Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, Parque Estadual do Guirá, ESEC Taiamã), a Terra Indígena Guató, além de várias comunidades ribeirinhas.

Toda a dinâmica de vazão dos rios iria mudar conforme avançassem as dragagens, pois o aprofundamento da calha do rio gera uma diminuição de possibilidade de alagamento lateral, que será mais detalhado abaixo.

 

Impactos ambientais previstos 

Baseados em estudos científicos de anos de dedicação, pesquisadores encontraram diversas falhas no projeto, que impactariam gravemente vários trechos do rio Paraguai, principal rio do Pantanal, além de seus afluentes, como o rio Miranda. Algumas modificações envolvem dragagem, ou seja, remoção de sedimentos, areia e lodo do fundo do rio, e também remoção de afloramentos rochosos ao longo do curso do rio. Tais alterações físicas no curso natural do rio podem trazer sérias consequências, tais como:

  • Alteração na dinâmica hidrológica: a dragagem pode encurtar o período de inundação e reduzir a extensão das áreas úmidas. Estudos indicam que um aumento na profundidade do canal entre 10 e 25 cm poderia reduzir a área alagada em até 31,4%.Essa diminuição afetaria negativamente a biodiversidade e a dinâmica ecológica do Pantanal;
  •  Erosão e poluição: o tráfego intensivo de barcaças pode causar erosão das margens e ressuspensão de sedimentos, além de liberar poluentes como combustíveis e óleos no rio, degradando a qualidade da água e afetando ecossistemas aquáticos sensíveis;        
  • Impactos em Áreas Protegidas e Comunidades Tradicionais: a região atravessada pela HPP inclui diversas Unidades de Conservação e Sítios Ramsar, áreas de alta relevância ecológica internacional de acordo com a Convenção sobre as Zonas Úmidas de Importância Internacional. A degradação dessas áreas pode comprometer a conservação dos ecossistemas e afetar negativamente as comunidades tradicionais que dependem do rio para sua subsistência;

 

Impactos Socioeconômicos previstos

  • O Pantanal é uma região onde atividades tradicionais, como pesca artesanal, pecuária extensiva e ecoturismo são fundamentais para a subsistência das comunidades locais. As modificações propostas pelo projeto da HPP podem resultar em grandes prejuízos a estas práticas socioeconômicas. A redução das inundações e a degradação da qualidade da água podem impactar diretamente a pesca, tanto para subsistência quanto para o turismo que, juntos, geram milhões de dólares anualmente para a economia local;
  • Vulnerabilidade das comunidades: as comunidades tradicionais na Bacia do Rio Paraguai, como ribeirinhos, pescadores artesanais e povos originários, enfrentam uma vulnerabilidade crescente devido à intensificação dos conflitos sobre o uso da água. A governança da água na bacia é caracterizada por assimetrias de poder entre os países envolvidos e entre diferentes grupos sociais, o que resulta na exclusão dessas comunidades dos processos decisórios. Esses grupos dependem diretamente dos recursos hídricos para sua subsistência e são os mais afetados por alterações na quantidade e qualidade da água causadas por atividades como a dragagem.
  • Desafios na integração física: a HPP, embora promova a integração física dos países do Mercosul, enfrenta desafios significativos devido à falta de consenso em relação aos estudos de impacto ambiental, à escassa participação do setor privado no financiamento dos projetos e às discrepâncias regulatórias entre os órgãos nacionais e regionais.
SOS PANTANAL Hidrovia Paraguai-Paraná: o que se sabe desse projeto antigo que pode decretar o fim do Pantanal?

Dragagem constante em portos pode afetar a dinâmica hidrológica do rio Paraguai – Foto: Tulio F. by CCA-SA 4.0

Oito impactos que a implantação da Hidrovia podem gerar

De acordo com um estudo científico recente assinado por 42 pesquisadores de instituições nacionais e internacionais, especialistas nas mais diversas temáticas do Pantanal, oito principais impactos poderão ser gerados na implantação definitiva da hidrovia:

  1. A dragagem do leito do rio resultaria em níveis de água mais baixos, causando a perda dos ecossistemas de planície de inundação, em função do aumento da descarga do rio;
  2. Estruturas ecológicas seriam impactadas, alterando a dinâmica nas áreas úmidas e no leito do rio, afetando toda a biodiversidade nesses ambientes;
  3. Os impactos sobre os serviços ecossistêmicos trariam profundos efeitos socioculturais, comprometendo os recursos dos quais as populações tradicionais locais dependem;
  4. A modificação da dinâmica das cheias e dos pontos de controle de fluxo no Pantanal, resultaria na perda da capacidade de amortecimento das inundações, levando a uma sobreposição dos picos de inundação nas regiões de encontro dos rios Paraguai e Paraná, colocando em risco áreas da Argentina e do Paraguai;
  5. O projeto pode interagir com os impactos da mudança climática, exacerbando os danos aos ecossistemas do Pantanal;
  6. As alterações na hidrologia poderiam potencializar a mudança no uso da terra no Pantanal em função da redução das áreas sujeitas a inundações no Bioma, alterando a paisagem e a ecologia da região;
  7. Deterioração da qualidade da água e da dinâmica dos sedimentos, além de alterações na estrutura da calha do rio Paraguai;
  8. A navegação intensificada traria impactos diretos da navegação, causados pelas ondas, acúmulo de sedimentos em pontos de conexão rio-planície, causando perda de conectividade, danos diretos à ictiofauna causados pelas hélices, risco de poluição aumentado, entre outros. 

 

A seca histórica no Pantanal tem freado as obras

O período de seca histórica que o Pantanal vem enfrentando tem obrigado as obras de dragagem e a navegação pararem. Cientistas que estudam o Pantanal se posicionaram veementemente contra a continuidade das operações de dragagem em um período extremamente seco, além de questionarem se, com a persistência da seca, ainda será viável a continuidade do projeto, que dependerá cada vez mais de dragagens para permitir a navegação.

 

Como o megaprojeto tem avançado nas negociações políticas

A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) colocou em andamento o processo de concessão da hidrovia até 2025, juntamente de outras concessões de hidrovias brasileiras na rota de integração do Mercosul, como o rio Madeira, na região amazônica. 

De acordo com dados da ONG Ecoa, em 31 meses, período que compreende os últimos 5 anos, o nível que o rio Paraguai atingiu, não permitiu que barcaças transportassem o minério de ferro que é extraído da região pantaneira de Ladário e Corumbá (MS). Tal ponto abriu margem para a discussão da viabilidade de dragagens contínuas para que este transporte possa ser feito, mesmo em épocas de extrema seca, como está acontecendo neste ano de 2024.

 

Consolidação silenciosa da hidrovia 

SOS PANTANAL Hidrovia Paraguai-Paraná: o que se sabe desse projeto antigo que pode decretar o fim do Pantanal?

Trechos da hidrovia estão sendo aprovados aos poucos, pulverizando os impactos ambientais – Fonte: Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (UFPR) / O Eco

A hidrovia, que conta com mais de 4 mil km de extensão, vem sendo implantada aos poucos por meio de projetos, investimentos e licenciamentos pulverizados pelos governos dos cinco países, mascarando os severos impactos ambientais e sociais que este megaprojeto gera. 

Em 2023, o projeto da hidrovia entrou no Plano de Aceleração de Crescimento (PAC) do Governo Federal e vem ganhando força em discussões no Senado Federal. Atualmente, acordos políticos entre os países avançam no Senado Federal e também pelo Governo Estadual de Mato Grosso do Sul, que vê a hidrovia como importante trecho de escoamento de produção do estado, o que é contestado pelos cientistas, alegando que há outras formas de fazer o transporte destas cargas (ferrovias, rodovias, entre outros).

A implantação da hidrovia, apenas no lado brasileiro, foi estimada em US$ 422 milhões, hoje cerca de R$ 2,4 bilhões, investimentos feitos por empresários e políticos daqui e de países vizinhos.

Respondem pela ampliação do Porto de Cáceres (MT) a Companhia Mato-Grossense de Mineração, empresa público-privada ligada ao governo estadual, e a Associação Pró-Hidrovia do Rio Paraguai, liderada por um produtor rural.

De acordo com as normativas brasileiras, aprovação de portos e demais obras deveriam ser licenciadas juntamente ao compor hidrovia, incluindo consultas públicas às comunidades afetadas pelas obras. Em uma ação para driblar a fiscalização brasileira por meio do Ibama, os portos no rio Paraguai foram desmembrados da obra principal em projetos individuais e tem sido aprovados por órgãos dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, medida esta que é questionada na Justiça Federal.

A liberação pontual de portos mascara os severos impactos trazidos à região, como o aumento do tráfego de veículos pesados e trens até os terminais à beira-rio, aumento de risco de assoreamento, acidentes com cargas e contaminação das águas, além da alteração de toda a dinâmica hídrica do rio causada com as dragagens permanentes necessária para a manutenção de portos.

Um porto que obteve licença prévia mais recentemente (2022) foi o Terminal Portuário Paratudal, no município de Cáceres, município do pantanal mato-grossense. Além deste, mais dois outros portos já estão licenciados na região: o Porto Fluvial de Cáceres e o Porto Barranco Vermelho.

Recentemente, no mês de setembro de 2024, o atual Secretário Nacional de Hidrovias, Dino Antunes, afirmou que tem tido problemas na aprovação de obras de dragagem no rio Paraguai, além de liberação de trechos de concessão da hidrovia, por conta de “ambientalistas, ditos acadêmicos” que querem barrar o avanço econômico da região, durante sua participação na Comissão de Infraestrutura do Senado.

Já, no dia dois de outubro, a Secretaria Nacional de Hidrovias e Navegação, do Ministério de Portos e Aeroportos (MPor) esclareceu, em reunião com cientistas especializados no Bioma Pantanal, que não faz parte do atual projeto de hidrovia do Rio Paraguai a realização de dragagem de aprofundamento no chamado Tramo Norte, entre as cidades de Cáceres e Corumbá.

O trecho de 680 quilômetros entre Cáceres (MT) e Corumbá (MS) continuará a ser utilizado apenas por embarcações de pequeno e médio porte, que não envolvem o transporte de grandes quantidades de carga, evitando assim impactos na planície de alagamento do Pantanal. 

O que podemos fazer para garantir a perpetuidade do Pantanal?

Nós, do SOS Pantanal, estamos acompanhando de perto os avanços nas negociações políticas que estão acontecendo para a viabilização da Hidrovia. Temos unido nossa força a de outras organizações que lutam pela conservação ambiental do Pantanal e dos povos que dele necessitam.

Apoie nosso trabalho para que possamos garantir que a voz da sociedade civil organizada seja ouvida!

 

Referências

  1. Baigún, C. R. M. & Minotti, P. G. Conserving the Paraguay-Paraná Fluvial Corridor in the XXI Century: Conflicts, Threats, and Challenges. Sustainability (Switzerland)13, (2021).
  2.   Girard, P., de Oliveira Roque, F., Cabral de Sousa, W. & Hamilton, S. K. Expansion of fluvial transport of commodities through the Pantanal floodplains of Brazil: Potential impacts and interference by climate change. ConservSciPract (2024) doi:10.1111/csp2.13126.
  3.   Jesus, B. de O. & Garcia, T. de S. L. Revisão bibliográfica sistemática sobre o eixo hidrovia Paraguai-Paraná. Research, Society and Development11, e48211124022 (2022).
  4.   Wantzen, K. M. et al. The end of an entire biome? World’s largest wetland, the Pantanal, is menaced by the Hidrovia project which is uncertain to sustainably support large-scale navigation. Science of The Total Environment 908, 167751 (2024).
  5.   Barbosa, F. D. & Ribeiro, W. C. Transboundary conflicts and water governance in the Paraguay River Basin – South America. Sustainability in Debate 15, 82–96 (2024).
  6.   Ferreira, F. H. M., Cabral de Sousa Júnior, W., Bressiani, D., Manoel Mendes Filho, W. & Aparecido Gonçalves, D. Climate change in the Upper Paraguay Basin and hydrological impacts on the Pantanal. Journal of Water and Climate Change 15, 3210–3221 (2024).
  7. https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0048969723063787?via%3Dihub
  8. https://oeco.org.br/analises/ambientalistas-ou-cientistas-quem-questiona-o-projeto-de-uma-hidrovia-no-pantanal/
  9. https://www.viomundo.com.br/bichoestapegando/debora-calheiros-a-seca-extrema-esta-salvando-o-pantanal.html